sábado, 16 de abril de 2011

Meu caro amigo

Não nego a existência da seca. Nego seja ela a causa de fenômeno da fome no Nordeste. Como nordestino, como homem da região das secas, como filho de homem do sertão e como neto de retirante da seca de 1877, não nego a existência do fenômeno: é mister, entretanto, que não se explore a questão, dizendo que a culpa de tudo é a seca, quando há outros culpados e mais do que ela. Os males do Nordeste derivam da exploração econômica aí implantada, que fez desta área uma colônia de outra colônia. A princípio, uma colônia de Portugal, explorando colonialmente por outras potências europeias mais fortes e, depois, colônia do Sul do Brasil, explorado colonialmente por várias potências de economia dominante. No Nordeste, a morte é uma tal constante, um fator social de tamanha importância na vida da região, que o que mais prospera aqui são os cemitérios. A maior parte das crianças volta cedo à terra, logo nos primeiros meses de vida, como se estivessem arrependidos de terem nascido em uma terra tão pobre, ou como se não tivessem sido preparadas para uma viagem mais longa. Nascem mais para morrer que para viver, mais para povoar céus como anjos, na consoladora crença de seus pais, do que povoar a terra como homens. Em um lugar onde não é a terra que dá de comer ao homem, é antes o homem que nasce apenas para dar de comer à terra. para alimentar essa terra-cemitério que engorda com sua matéria orgânica. E de que morra tante gente? Morre-se de tudo, mas principalmente de fome. É a fome em seus variados e múltiplos disfarces, o mais ativo dos cavaleiros do Apocalipse que arrasa as populações pobres.
Josué de Castro, em discurso na Câmara Federal, em 1958. 


Caro Josué,
Tanto pensei em lhe escrever, mas a verdade é que as idéias me fogem no momento. Um pouco por vergonha, e em grande parte por minha admiração profunda pela sua pessoa. Seu discurso sempre foi tão alinhado a suas condutas, e isso é tão raro hoje... Infelizmente.
Acho que venho lhe informar do óbvio. A desnutrição e a fome vem sendo paulatinamente vencidas no nosso país, mas ainda assola milhões de pessoas em algumas regiões do mundo, o que não deixa de ser nossa responsabilidade. É até besteira falar isso para o senhor, que foi presidente da FAO!
A desnutrição nos seus indicadores simples vem diminuindo, mas ela vem tomando outras faces, outros disfarces. A transição nutricional agora nos submete a um excesso de alimentos, com muita energia e poucos nutrientes, trazendo a obesidade como o assunto mais discutido no nosso mundo. Mas ainda já a desnutrição não claramente pronunciada: aquela da criança gordinha, com bochechas visçosas, mas anêmica. Síndrome metabólica. Crianças hipertensas. Crianças diabéticas. Sim, Josué, o desafio torna-se cada vez maior.
Digo que o perfil mudou, mas as raízes do problema são as mesmas que estão implícitas nesse trecho de seu discurso. A falta de vontade política, que você conhece tão bem, e outros componentes de ordem social e cultural que mudaram o mundo de forma tão intensa desde que você se foi.
Falta amor ao mundo. Falta compreensão e carinho. Falta ao homem saber o que representa e onde ele se situa. As pessoas não sabem mais que o que elas fazem ou deixam de fazer são uma contribuição ou omissão ao mundo. Fazem as coisas por fazer.
Está todo mundo perdido, e ninguém faz questão de se achar. A ignorância é generalizada em um grau que a minha visão realista me permite dizer que está em um ponto irreversível.
Deveria haver no Brasil a criminalização da banalização. É um troço que ando formulando e pensando por essas semanas. O fato de um indivíduo ou um grupo de indivíduos tratar assuntos diversos de forma volúvel e passageira deveria ser punida.
Novela é um exemplo clássico. Os amores surgem e desaparecem em tempo recorde. O amor é completamente descartável e você tem direito a uns... oito "maiores amores da minha".
Esses programas do tipo "Esquadrão da Moda". Deviam ser proibidos. Uma vez, uma amiga escreveu um post só sobre isso, não vou conseguir achar isso agora, mas pensamos igual. A televisão quer passar pra você, mulher, a noção de que se você tem dez mil reais, um cabeleireiro e uma maquiadora, em dois dias você é uma outra pessoa. Em dois dias, você cria auto-confiança e auto-estima. Essas emoções que são tão íntimas e difíceis de se construir de maneira sólida, o dinheiro vai lá e traz pra você. Bom, não sei o fato de eu   não ser muito feminina me gere essa recusa por esses programas, mas acho que o conceito da coisa está errado desde sempre.
Big Brother Brasil. Ganha um milhão de reais quem consegue fazer intrigas de forma mais engenhosa. Ponto final.
O fato é que já estamos sendo punidos. Quanto mais uma sociedade dita padrões inatingíveis e comportamentos alienantes, o elo mais fraco e mais sensível se quebra, e da forma mais explosiva.
E aí, o que vamos fazer? Vamos colocar detectores de metal nas escolas ou vamos promover uma educação multidisciplinar e acolhedora, que saiba suportar e exaltar as diferenças, pelo bem de toda a sociedade?
Fiquemos com os detectores de metais.
Bom, querido Josué, quero que saiba que ler um de seus livros, há anos atrás, foi inspirador. Situou-me a importância da ciência que resolvi abraçar como profissão. Mas, ao longo desses vinte anos vividos, tenho lá minhas impressões do mundo. Talvez, um pouco distorcidas pelo meu jeito de pensar e meu jeito de ser. É meu viés. E não consigo pensar nutrição sem pensar em amor ao próximo, em ignorância, em poder. Em 2012. Em fim do mundo.
Tudo está interligado. Conto com sua lembrança e inspiração para seguir remando contra a maré every single fucking day.
Um abraço.

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